terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Pequenas Memórias XXVII



Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves


“- Bote lá outra caneca! Quero afogar esta mágoa que me rói cá dentro. Ora vejam: - Receber mais umas notas de cem na reforma, é um benefício que deveria ser festejado com repique de sinos e foguetório! Que pindérica vida esta! O operário têxtil reformado neste país – neste asilo de mendigos! – é um homem atirado à valeta!
E saber que há por aí tanto gandaieiro que nunca produziu nada – que passou a vida de lápis na orelha e mãos macias como as de ministro – a receber mais do dobro da bagalhoça de reforma do que aquele infeliz que trabalhou nas máquinas, que mourejou no duro!
... Fazem do operário gato-sapato. Eu que já fui tecelão, posso dizê-lo afoitamente e com toda a verdade!
A vida do tecelão é pior do que a dos “seringueiros” da selva amazónica ou a de alguns escravizados povos africanos, ou a do ganhão do nosso alentejo.
Esses ainda têm o céu ilimitado, a paisagem luxuriante e agreste, a pureza do ar, a liberdade de sofrerem e de serem desgraçados!
O tecelão, sem vislumbre de novos horizontes, metido entre quatro mal caiadas paredes, só tem as telhas de um vermelho cozido e os vidros foscos por onde o seu olhar mortiço, de pavio queimado, tenta furar para a vida livre e espontânea.
Os céus do tecelão são os ferros pintados de um verde deslavado e os fios de algodão que minuto a minuto, hora a hora, semana a semana, ano após ano – como um estigmatizado destino ou doloroso fadário – o oprimem, o despersonalizam e lhe matam a razão de ser homem, tornando-o numa coisa opaca, robotizada e fria, sem direito a criar e a ter ideias!
Tece, tece e leva uma vida de prisioneiro que não sendo como os dos campos de concentração ou de certas penitenciárias, se iguala, porém, na monotonia, na impotência e na desesperante incerteza de ver-se reconhecido como um Ser pensante e inventivo.
O seu raio de acção só comporta o pardieiro onde ressona e procria, a fábrica onde tece e apodrece, o café e a tasca onde se emborracha e o campo de futebol onde se despersonaliza! Nada mais!
Trabalha uma vida inteira a fazer pano para vestir os outros e anda ele mal vestido, pois o misérrimo salário que lhe pagam não compensa o seu esforço e não é suficiente para ele fazer face ao constante aumento do custo de vida; e no fim, velho e doente, acaba a pedir esmola para não morrer de fome, pois a reforma que a lei lhe confere não é o bastante para poder viver como homem livre e independente”.


Ferreira Neto
A Serpente era Mulher, romance, 1985
Edição Junta de Freguesia de Vila das Aves

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Pequenas Memórias XXVI


Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves


"
... Ainda me recordo de quando passava na rua, junto da passagem de nível do mercado Silva Araújo, estarem debaixo das chapas do barracão alguns trabalhadores da fábrica Rio Vizela – vulgo Negrelos – com os panelos entre as pernas, cheios de couves mal adubadas, que eles tiravam com um garfo para comerem!
Era assim só miséria... "

A Serpente era Mulher
Ferreira Neto, Junta de Freguesia de Vila das Aves, 1985


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Pequenas Memórias XXV


A Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves


(.../...)

“O comendador levanta-se e vai encostar-se ao batente de uma janela. Tira de quando em quando uma fumaça do seu charuto.
A um aceno do comendador, Ricardo ergue-se da cadeira e vai encostar-se à mesma janela mas do lado contrário.
Olham ambos lá para fora e o comendador estende o braço direito e com a mão aponta o local onde, diz, vai mandar construir um bairro de casas de renda económica.
- Sabes Ricardo. Delfina diz que é uma “toléria” a minha ideia. Que não vale a pena, que já estou velho para andar a incomodar-me com estas coisas...
Mas eu estou com esta ideia ferrada na cabeça e tem de ser. Mas digo. Não haverá festa, nem discursos, nem corte de fita – porque não haverá fita – nem convidados, nem benzeduras. E dou-lhe o pretexto de casas económicas cá por coisas...
Mas as casas que vou mandar construir são para dar aos meus operários. Aqueles que não tem casa. Dá-las. Dá-las simplesmente. Está na moda esta forma de fazer socialismo. Mas tudo isso não passa de uma uma bambochata.
Dava-se ao operário um ordenado compatível e sociedade na empresa, porque se o patrão é o senhor do capital, o operário é o senhor do trabalho, um tem o dinheiro, o outro tem as mãos – e ele que fizesse ou mandasse fazer à sua maneira e a seu bel-prazer a casa e tudo aquilo que necessita. Dar-lhe mais dinheiro e com ele a liberdade de criar e de escolher. Assim o operário é um autêntico escravo! Pior!
Porque com o escravo propriamente dito o seu dono não podia dar-lhe muito maus tratos porque se ele morresse perdia o dinheiro do seu custo e o rendimento do seu trabalho. Agora não!
Ao patrão tanto se lhe dá que o operário morra ou que viva. Para ele é igual. Não perde nada com isso. Um a sair, uma dúzia ao portão a pedir emprego.
(... / ...)
Ferreira Neto
Cruzamento (romance), 1963
Edição de Autor

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Pequenas Memorias XXIV


A Textil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves



CANÇÃO DO LINHO




Era popular, esta cantiga, entre as tecedeiras dos anos quarenta.
A cantiga, ao que parece, ajudava as tecedeiras e os tecelões na tecelagem, bem difícil, do linho.

Anda a roda e as canelas
Vão cheias para o tear
Não trabalhava sem elas
Ele é que as há-de esfiar

Passa o fio pela mão
Para seguir bem direito
Vai tecê-lo o tecelão
Com amor, carinho e jeito

O linho maciozinho
Quando às vezes vem a neve
Faz da casa um paraíso
O linho torna-se leve

Tão leve e tão benfazejo
Tão querido de todos nós
Que os seus lábios protegem
Do traidor lobo feroz

A canela já está toda
Bem cheiínha e então descansa
Pelos minutos na roda
O braço também se cansa

Pois o trabalho é preciso
Trabalhando, a minha mãe
Também se cansa, também
Lá no cimo das montanhas


Depois volta a manivela
Com rapidez a girar
Assim trabalha o tear
Com lançadeira e canela
Nota: Assim cantava minha mãe tecedeira
Professor José Machado

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pequenas Memórias XXIII


A Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves
Os meus 40 anos de empregado têxtil



Se alguém me perguntar se a caminhada
Foi dura do começo até ao fim ...
Prefiro responder sem dizer nada:
Não sofro... nem sofri... sei ao que vim!...

Foi como uma oração, de fé rezada,
E acompanhada a toque de clarim...
Nem só quem chora sente a alma cansada,
Também há desencantos dentro de mim...

Meus olhos, como tal, nunca sorriram,
As flores mais tratadas não abriram
E as que abriram murcharam de repente...

Valeu-me esta constante sinfonia
Que se chama beleza e poesia
E me deslumbra a alma eternamente!...



Fernandes Valente Sobrinho
Ponto Final (Poesias)
Vila das Aves- 2008
Ed. De Autor

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Pequenas Memórias XXII


A Têxtil nos Poetas e Prosadores de Vila das Aves
Poema a Vila das Aves

Vila das Aves, meu amor primeiro!...
- Visão distante: um homem... um arado...
O sol... duas janelas... um cruzeiro!...
E a terra preta feita grão dourado...

Vermelhas chaminés que o branco arado
Foi levantando em volta do cruzeiro!...
Meu mundo pequenino... dilatado!
Já vestes quase Portugal inteiro...

Meu Ave e meu Vizela sussurrantes,
Neste poema aberto entre vós dois
Há páginas que falam de gigantes...

...Milagre que Deus fez pelo seu braço:
Onde cantavam dantes rouxinois
Rangem agora maquinismos de aço...


Fernando Carneiro


- 1ºs Jogos Florais de Vila das Aves – 1º Prémio na categoria: Soneto
1957
Paisagens do Meu Mundo, 1958
Ed. de Autor

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Pequenas Memórias XXI


A Têxtil Nos Poetas e Prosadores de Vila das Aves
Mulher da Minha Gente




Um silvo rouco entra pelo sono dentro,
Na rotina implacável do labor fabril
É breve a infância, o sonho interrompido
E já os olhos se lavam na manhã urgente
Para entrar a calhar no ritmo do tear.

Seus passos, ao compasso doutros passos,
Perdem-se no anónimo rumor
E tem por companheiro o braço desta gente
Que fia e tece sonhos de grandeza
Por dez reis de sonho, em recompensa.

Mulher que se agiganta ao frenesi da máquina
E conhece, por dentro, a urdidura
Desta teia que a trama e configura
O gesto livre de amar, sem galanteio,
Ou a altivez com que se nega a usura.

Sente a amargura do algodão nas cardas
Nas horas desfiadas a cismar nos filhos
- Linho fiado sem igual desvelo –
E, tão madrasta é a vida por deixá-los
Horas a fio, à sorte, ao abandono!

O cotão da idade branqueia-lhe o cabelo,
Sabe a textura das rugas no tecido
E quando deixa a lida já tem netos,
É pródiga de beijos e de afectos,
Mulher que se gastou, mulher da minha gente.


Luís Américo Carvalho Fernandes
1º Caderno de Poesia (Autores Avenses)
Edição – Associação Avense - AA78
1980

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Pequenas Memórias XX


A Têxtil nos Poetas e Prosadores de Vila das Aves


Saudades



Num labutar amargo e sorridente,
Vila das Aves, mãos de cavadores
Faziam do teu peito uma nascente
De vinhas, milheirais e raras flores...

Mas tudo se mudou, es tão dif`rente
Do tempo em tiveste lavradores:
Agora brota o pão de outra semente
Que germina da força dos motores...

... E este chão que vê passar as horas,
não dará mais pinhões nem mais amoras,
morreram os silvedos e os pinhais...

- Ó minha Vila, doce como o mel,
Hei-de chamar-te sempre São Miguel,
Ouvindo a chilreada dos pardais.


Benjamim Fernandes Valente
Autores Avenses
Vila das Aves, 1985.
Ed. da Junta de Freguesia de Vila das Aves. Volume I

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Pequenas Memórias XIX


A minha Aldeia
Uma malhada
A malhada era uma das actividades em que se dividia o trabalho das ceifas, trabalho realizado ainda os ardores do verão se faziam sentir fortemente.A malhada tinha como objectivo principal, a separação do grão, da palha do cereal que na altura enchia normalmente os campos minhotos: o centeio. Mas a malhada era bem mais que isto; tinha um ritual próprio, por todos os participantes conhecido e respeitado.Os participantes convidados começavam a chegar à eira do "patrão" (o lavrador que promovia a malhada), já o sol declinava no horizonte e a temperatura se tornava mais suportável. Alguns já tinham ajudado na ceifa e, após os cumprimentos da praxe, entretinham-se em amena cavaqueira, em que imperava a boa disposição. Enquanto se esperava pelos convidados importantes (malhadores com créditos bem firmados), ia-se beberricando o saboroso verde tinto, sempre apreciado por quem tinha permanentemente a garganta seca, servido em generosas malgas ou brancas canecas. O "tinto" chegava a ser a imagem de marca do lavrador.Chegada a hora julgada conveniente, cada qual pegava no seu malho e, sob o olhar conhecedor e atento do "polaina" (o malhador mais credenciado) que conduzia o trabalho, tinha início a malhada.Sendo uma actividade onde, apesar de tudo, se dispendia muito esforço, a malhada não deixava de ser ao mesmo tempo um trabalho divertido e uma competição em que cada malhador procurava esmerar-se no que fazia e por isso era apreciado e julgado. E a fama de alguns chegava longe!...
Do Fundo do Baú - Professor José Machado

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Pequenas Memórias XVIII














A Escola da Tojela


O Tempo contabilizado (capturado?) pelo Homem passa velozmente, quando não temos tempo para viver! E, quando não se tem tempo para viver, em certo sentido, já se está morto.
O Tempo, essa coisa etérea, impalpável, inexistente (?) preocupa-nos, sobretudo quando olhamos para trás e do caminho percorrido poucos e bons sinais existem.
Vem isto a propósito do antigo edifício-sede da Junta de Freguesia, também antiga escola primária e antiga biblioteca.
É um edifício que faz parte da história da vida de muita gente que, como eu, lá aprendeu as primeiras letras. É uma casa bem assinalada no caminho da nossa infância, a partir do momento em que, com um saltinho e pela mão da nossa mãe passámos, pela primeira vez, para além do respeitável portão que fechava o recreio.
Antes de ser o que foi, era casa de habitação pertencente a António Martins Ribeiro. Foi-lhe comprada pela Junta de Freguesia presidida por Bernardino Gomes Ferreira, por 50 contos.

(Fonte: Prof. Machado)

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Pequenas Memórias XVII




Folclore II
Os Marinheiros das Fontainhas, hoje Etnográfico das Aves, apareceu, como o próprio nome indica, no lugar das Fontainhas, num tempo de grande fervor bairrista.Fontainhas era, de facto, com os lugares vizinhos, Sto Honorato e Ponte e também Sobrado, um lugar onde fervilhava mais o amor ao lugar e à freguesia.Além disso, era nas Fontainhas que estava o campo de futebol onde domingo a domingo se desenrolavam autênticas "batalhas" de apoio ao "Desportivo", a bandeira maior de S. Miguel das Aves!Ora, foi num pequeno terreiro que ficava junto da entrada poente do "Bernardino Gomes" que Os Marinheiros das Fontainhas fizeram os primeiros ensaios. Pertencia ao "Szé Caseiro". Junto também, havia uma conhecida tasca "O Escondidinho" onde os elementos do grupo, por certo, dessedentavam as gargantas em alturas de ensaio.Curiosamente, um dos autores das letras que Os Marinheiros cantavam foi o escritor e poeta Joaquim Ferreira (Ferreira Neto) que, por acaso, era atleta do "Desportivo" e com certeza conheceria "O Escondidinho"...
VILA DAS AVES
Vila das Aves formosa
Tem os encantos da rosa
E a magia do luar
Feita d'um sonho de amor
Quem sentir o seu fulgor
Nunca mais a quer deixar
Aves é terra com graça
Que até a brisa quando passa~
D'ela fica enamorada
E vai às outras contar
Os mil encantos sem par
D'esta terra abençoada
Vila das Aves tão linda
De beleza que não finda
Por graça da natureza
Tem o enlêvo da aurora
E a Virgem Nossa Senhora
N'ela mora com certeza .
Vila das Aves tão bela
Teu nome é uma oração
Que eu rezo *a minha janela
Aberta no coração (bis)
Foto onde teria sido O Escondidinho e do poeta
Fonte: Prof José Machado

terça-feira, 23 de junho de 2009

Pequenas Memórias XVI


Tratado dos Brinquedos de Outrora para os Meninos do Futuro


Um dia ainda hei de escrever um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos”.
Guimarães Rosa

(Estes brinquedos não são para meninos
quietos, mas são um tratado de brinquedos para a infância)



Por exemplo: os arcos e as guias: se o arco fosse de ferro era mais perfeito que se fosse feito da roda de uma velha bicicleta; o som da guia a empurrar um arco de ferro pela rua abaixo, era uma bela música para os ouvidos dos rapazes. Os carrinhos de arame e os de latas de sardinha; as bolas de plástico de borracha e de capão. Os berlindes. O jogo da mosca nos intervalos das aulas, dos cowboys e do esconde no meio das bouças. Cada jogo destes tinha uma época de ouro no ano para se jogar, depois passava de moda e jogava-se outro Os berberinhos de vento em casca de eucalipto; os pneus, e as suas várias utilidades: desde rodas guiadas com dois paus, baloiço numa árvore, bóia no rio – e aí os pneus de camião eram os melhores. A colecção de cromos de jogadores de futebol vendidos nas mercearias embrulhados em rebuçados. As caricas ou conchas e de como fazíamos autenticas pistas para uma corrida emocionante; o jogo do botão com as suas “decas” e do pião e das piascas; o difícil ofício de encontrar grilos e com a palheira mágica das cócegas fazê-los sair da toca .Em casos extremos o método era a da urina. As altas casas nos árvores, as cordas e os poços, os esconderijos, as gruta e as minas; o espelho das águas nos tanques de pedra, os barcos de cortiça que nos levavam à aventura...
As fisgas, instrumento de uso múltiplo dos rapazes de antigamente; servia em várias campanhas: as das castanhas por exemplo, das cabeças rachadas e a dos pássaros: a mais mortífera. Cortar os rabos dos lagartos à pedrada, nos muros do verão e vê-los desaparecer pelos buracos escuros das pedras com os rabos decepados. Inchar sapos com o fumo dos cigarros e vê-los rebentar .
Como também são cruéis os rapazes!

terça-feira, 2 de junho de 2009

Pequenas Memórias XV




FOLCLORE (1)

Cantigas e Danças de Velhos Tempos
Como muitos outros, também o povo da terra de S. Miguel das Aves cantou e dançou cantigas folclóricas.
1955. Motivados pelas rusgas organizadas em cada lugar da freguesia no sentido de formarem cortejos de oferendas para as obras de construção do “Patronato”, alguns desses lugares, os mais populosos, criaram o seu rancho folclórico.
Rudimentares, de início, o bairrismo e alguma rivalidade, conduziram à “purificação dos trajos, das cantigas e das danças que se tornaram, a pouco e pouco, mais genuínos, mais característicos da nossa região. Vamos passar sob este tema algumas cantigas e danças desses primeiros tempos dos cinco ranchos que existiram na nossa terra.
1 - Os Marinheiros das Fontainhas, mais tarde Rancho Etnográfico das Aves
Este agrupamento teve como um dos fundadores Augusto da Cunha Monteiro (Augusto “Sete”) cuja esposa, Maria de Jesus Costa (Maria “Sete”), ainda viva e senhora de uma provecta idade (99 anos) e voz maravilhosa escreveu algumas letras.


Canções de Marinheiros
Letra de Maria de Jesus Costa
A nossa farda é escura
Ai! Tem a cor da singeleza
O azul é formosura, ó ai!
E o branco é lindo, é cor de pureza

A nossa farda é escura
Ó marinheiros não tenhais pena
A açucena é pureza, ó ai!
A nossa blusa é da cor d’açucena

Cantai, cantai marinheiros
Ai! Cantai com satisfação
A nossa blusa é branquinha, ó ai!
Nós temos pureza junto ao coração

Marcha Rio Vizela
Letra de Joaquim Moreira

Das Fontainhas do meu encanto
Vejo as encostas do monte
Trinando além rouxinóis
Murmurando aqui as fontes
Passagem do rio Vizela
Céu azul sem ter igual
Fontainhas é jardim
D’este lindo Portugal

(Estribilho)
Vamos firmes combater
Mostrar sempre até morrer
Nossa falange altaneira
Pelo rancho dos Marinheiros
D’entre todos o primeiro
Avante nossa bandeira

Ai! Com pureza no coração
Segue sempre olhar em frente
Mesmo ferido e retalhado
Não deixes nunca a bandeira
Morre n’ela amortalhado
Se alguém quiser humilhar
Este pendão sem igual
Defende-o com valentia
Se ao rancho és leal
Fontainhas hoje de novo
Levanta o seu esplendor
Um brado aos altos céus
Pedindo a paz do Senhor
A todos que nos escutam
Um adeus de despedida
Nós vamos rogar a Deus
Que sejam salvos na vida


Fonte: Do fundo do baú, de Prof. José P. Machado

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Pequenas Memórias XIV



Publiquei em Março deste ano, neste blog, a 1ª parte do conto "Desilusão" de Ferreira Neto (1923 / 2003).Publico hoje a 2ª parte deste belo conto publicado no livro "O sorriso da Máscara", que teve uma edição de autor muito limitada e artesanal, como era timbre do autor. Penso ser este um dos últimos contos do saudoso escritor avense.

Porque estas são também as minhas memórias ...

... Velhos caminhos, resguardados por baixas paredes de pedra enegrecida e solta, debruadas de musgo e hera e de silvas carregadas de amoras grandes e pretinhas como azeitonas, das quais fazia vinho num púcaro de barro, que depois bebia deliciado juntamente com outros colegas de brincadeira.
A oliveira grande, como lhe chamávamos, que ainda lá está, muito velhinha, mas ainda com vida, no topo da cancela da Quinta do Outeiro, junto do prédio do Gouveia onde funcionava no rés-do-chão a escola primária.
(Um dia de manhã, ainda me recordo, ao chegar a hora de ir para a escola, meu pai, que já estava em mangas de camisa na loja a atender os fregueses – meu pai nesta data possuía um estabelecimento de mercearia e vinhos – deu-me um recado para levar à minha avó.
Meti rua abaixo rumo a sua casa, que ficava perto, para lhe transmitir o recado.
Quando cheguei, minha avó estava sentada na cama a rezar.
Pedi-lhe a bênção, dei-lhe o recado e sentei-me a seu lado enquanto ela me afagava o rosto e os cabelos.
Aos pés da cama e pendurado na parede havia um quadro estranho (esse quadro é minha pertença desde a sua morte e não interessa plasmar esse quadro em palavras, aqui e agora, por fastidioso), sem contudo descobrir por mim só, a mensagem que transmitia.
Como a minha avó notasse o meu desejo de desvendar o mistério desse quadro, não se fez rogada.
E sem mais aquela me decifrou uma a uma as simbólicas figuras que enchiam a tela. No meu ingénuo e interessado arrebatamento não me dei conta da hora da entrada na escola.
Foi meu tio Francisco (o Chico Teixeira) que da oficina de alfaiataria me chamou à realidade, dizendo-me que fosse andando que era mais que tempo.
Dei um beijo na minha avó e corri como um alce a ver se encontrava ainda pelo caminho algum colega mais retardatário!
Não tive sorte!
Ao chegar junto da escola já a aula tinha começado há cerca de meia hora.
Em vez de bater à porta e pedir licença à professora D. Benedita para entrar, abeirei-me da oliveira e trepei (por ela) como gato bravo!
Estava uma manhã primaveril, um sol límpido e um céu azul, sem nuvens.
Inebriado pela beleza da manhã e pelo gorjeio dos pássaros nas árvores em redor, deu-me na bolha para cantar diversas cantigas, muito em voga nessa época, entre elas a da Rambóia, que principiava assim:

“Rambóia,
Vai p’rá rambóia
Vem da rambóia
Eu bem o sei.
Só por morte, meu Deus,
Ó que sorte
Só por morte
A rambóia deixei.”
A cantiga fazia perder de riso o mais sisudo, quanto mais tratando-se de jovens escolares.
Ia a cantarola em meio quando me chegaram aos ouvidos as estridentes gargalhadas que na escola alguns dos meus colegas soltavam.
O Tónio Garcia, o Augusto Lima, o Tino Galego, o Zé Maria Manquinho e outros…
Se já estava a cantar com gosto e certinho, daí por diante é que presumei.
Quanto mais e melhor eu cantava, mais a risota da malta aumentava.
Quanto mais eles riam, mais me dava ganas de abrir as goelas.
A brincadeira durou quase uma hora!
Quando me encontrava (já) meio rouco e cansado do esforço que fizera para levar ao máximo as cordas vocais, inclinei um pouco a cabeça para baixo e vejo o meu pai no caminho, perto da oliveira, qual estátua de severidade, de olhos fixos em mim!
Creio que fiquei paralisado de espanto e de medo e que o meu coração deixara de bater por momentos!
Se naquele instante pudesse evaporar-me, julgo que o teria feito!
- Desce daí, meu melrinho, disse-me ele: estiveste a cantar a rambóia e eu agora vou ensinar-te a dançar a chula vareira!...
Dali até à nossa habitação coçou-me o traseiro bem coçado com uma porrete de sobreiro, já antigo e encascado, que existia em casa e fora o seu inseparável companheiro nos muitos serões que fizera enquanto moço.
(Nunca consegui apurar como foi que meu pai soube do que se estava a passar; para que se efectivasse a sua presença ali!)
Ai a minha amada e saudosa terra. Sinto rachar-me a alma ao ver-me longe de ti.

Ó Aves, terra querida,
Como tu outra não há!
Ó morte eu dava-te a vida
Se tu ma levasses lá!...

Quero ver a terra remexida
Pelo tractor e pela enxada.
Quero sentir o bafo do gado
E o cheiro do esterco nos campos
E ver as flores ao natural
E as estrelas ao luar:
Quero ouvir o toque das Ave-Marias
E o falar ingénuo dos Maneis e das Marias…

E os sinos… o sino grande, o das almas e o das Ave-Marias. E cada repique, cada toque, cada som, alegre ou nostálgico é uma prece, que as aves cantam, a gente reza, a brisa murmura e as flores e as árvores entendem.
Onde se encontram orações pelos caminhos e cada velhinho é um santo sem saber que o é!
Moças prazenteiras e garridas como a Rosa Doceira, a Guida Travanca, a Linda Varandas e tantas outras. A Maria dos Prazeres, uma linda cachopa de olhos azuis e transparentes – como a água que foge de entre os penhascos saborosa e pura – e de cabelos castanhos, muito compridos, de corpo flexível, aveludado, natural, sem mazelas nem produtos de beleza (a não ser a beleza que a natureza prodigamente lhe concedeu) agarotada e meiga!...
Oh!... pudesse eu tornar ao principio e seria novamente feliz!...
Ambicioso, quis ser uma celebridade, um super-homem, e sou apenas um simples número, igual a milhões de números, sem beleza e sem glória!...
Na cidade é tudo automático, tudo fictício, tudo grotesco, tudo são fichas, tudo é falso, tudo é numerado!...
O homem é um número, a casa é um número, o quarto é um número, a rua é um número, o automóvel é um número, o autocarro é um número. Tudo são números!...
Na cidade não há personalidade, não há amor, não há caridade, não há fé, (Deus não existe!) a verdadeira luz do homem.
Na cidade o sol é um sol baço, triste e as suas noites não têm luar. É tudo é uma luz morta, artificial!
Na cidade tudo é matemático, tudo é conduzido (como rebanho de carneiros). Tudo é progresso. Tudo é ciência. Tudo é matéria. Tudo é frio. Tudo é lei.
Não há o gesto espontâneo, o sorriso aberto, o sentir de uma graça, a pureza de um sonho de amor, o sentimento profundo.
Tudo é efémero. Tudo é publicidade. Tudo é hora. Tudo é pressa. Tudo é pressa. Tudo é dinheiro. Tudo é mentira. Tudo é loucura. Tudo é barulho!
Na cidade não há espírito, não há alma. Na cidade os homens são máquinas, são robots!...
“Eu sou um robot!...”


Ferreira Neto

in O Sorriso da Máscara

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Pequenas Memórias XIII


As Fábricas:
como navios a apodrecer no cais deserto ...

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Pequenas Memórias XII


No tempo em que as crianças corriam para ver passar os comboios...

quarta-feira, 15 de abril de 2009

terça-feira, 7 de abril de 2009

O lago não sabe
até que chegue o vento
quantas ondas tem

David Rodrigues

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Pequenas Memórias - X



Hoje é sábado e na “baixa” o mundo é outro. Há movimento, respira-se ar de negócios e no mercado e nas ruas adjacentes corre uma multidão vinda de muito longe e de perto, ávida de comprar e de vender, de somente assistir ao escoar de massa humana, “ver passar a banda”, que deambula por aqui, e por ali – saudar este, cumprimentar aquele que já não via há imenso tempo. O tempo está quente: estamos em Abril e já se vêem homens e rapazes em mangas de camisa e colete ; as mulheres lá seguem com enormes cestos, sobre rodilhas, à cabeça, num equilíbrio precário, de saias compridas, aventais de pano cru e chinelas de cabedal; lá vão mercar chitas baratas, riscados, socos de coiro – ou então se é festa que se aproxima, baptizado ou casamento, lá mercam umas argolas de oiro ou uns botões para as orelhas, um lenço de merino ou de seda. Os homens talvez um relógio com corrente de prata, um chapéu de bom feltro, ou um alfinete para a gravata.
O tempo está quente: e o negócio é bom e entre os capões de Freamunde e as galinhas poedeiras de Lamoso, lá se vão alinhando numa certa desordem os lavradores e as lavradeiras, os vendedores e as vendedeiras com as carroças cheias de flores, fruta, ovos, sementes de batata, a couve galega, o repolho, a tronchuda, o milho, o feijão as cebolas. O povo chega de todo o lado – de Romão, de Sobrado e de fora da freguesia de Rebordões, de Lordelo de Bairro ou Sequeiró. Chegam a pé de madrugada, de bicicleta, de carreira ou comboio. Irão partir a meio da manhã uns, cheios de sacos e de novidades para contar em casa – outros mais tarde, depois de fazerem todos os negócios.
À medida que a manhã avança o burburinho vai aumentando e os pregões das vendedeiras atingem quem passa perto e mais longe e misturam-se com as súplicas dos aleijados estendidos em lugares estratégicos a mendigar “esmolinha por quem lá tem”, e a conversa das comadres e os gritos das crianças. Os homens apinham as tascas: a do Coelho ou a do Pisco e o cheiro a fritos inunda a rua; da pensão das Aves e a do Almeida há caixeiros – viajantes de chegada, outros de partida – tendo ajustado o negócio das fazendas nas fábricas do Rio Vizela, ou na da Traineira, que agora – são onze horas da manhã – abrem os portões. Uma leva humana sai apressada e engrossa a corrente dos que compram e vendem fazendas, miudezas, chapéus, louças, guarda-sóis; dos que entram e saem com embrulhos, sacos, da casa Capela, do Brandão, do Ferreira Dias, do Ricardo, do Pagajá...

Um rapazito descalço salta para cima do muro e grita: “Atenção, vem o comboio”! Um velhote apressa o passo para a outra banda e duas mulheres sobre a linha, antes que a cancela feche, fazem o mesmo mas no sentido da feira. Um cheiro forte a carvão, e uma nuvem de fumo avança mesmo junto ao muro. Um longo silvo atravessa o ar e o barulho da maquinaria inunda toda a rua, todo o mercado. O comboio imenso passa devagar. Há gente que acena das janelas. Irá imobilizar-se mais à frente. Mesmo a horas.
(texto publicado no suplemento do Jornal EntreMargens de 01/04/2009)

segunda-feira, 30 de março de 2009

Pequenas Memórias - IX



Os primeiros correios de Vila das Aves

sexta-feira, 27 de março de 2009

Jé é primavera -
Uma colina sem nome
sob a névoa da madrugada

Bashô

quarta-feira, 25 de março de 2009

Pequenas Memórias - VIII


Das Fábricas

O relógio parou mas dentro
dos muros da velha fábrica
abandonada uma figueira renasce
e de novo fico à espera dos doces figos
de outrora sentado num banco de pedra
até à hora do canudo
descanso de um antigo operário.

Os inúmeros caminhos que aqui
chegaram de todos os lugares;
caminhos hoje lamacentos
amanhã ressequidos de sol;
telhados fendidos janelas quebradas
muros a esboroarem-se em musgos
pedras casa de gatos vadios e lagartas:
quase nada.

Os homens chegavam de terras longínquas
Roriz, Lamoso, Paços de Ferreira...
Chegavam aqui iluminados pelos ímans
das bicicletas fechados um dia no
matraquear violento dos teares;
no intervalo comiam o caldo
as meias sardinhas as laranjas
de umbigo fora de horas e cansados
iam de novo pela noite dentro
atravessar montes e povoados
até ao fim do mundo
até ao fim da vida ...

sexta-feira, 20 de março de 2009

Xenofonte, amante do vinho, consagrou-te um tonel vazio, ó Baco.
Aceita-o de bom grado: ele nada mais possui.

Erastótones, o Escolástico

quinta-feira, 19 de março de 2009

Pequenas Memórias - VII


Não será a locomotiva Negrellos que no dia 31 de Dezembro de 1883 inaugurou o troço entre Trofa e Vizela, da linha do caminho de ferro de Guimarães, mas a próxima estação onde irá parar chama-se Vila das Aves.

terça-feira, 17 de março de 2009

Pequenas Memórias - VI


Porque estas são também as minhas memórias.


"Na aldeia onde tudo é simples, onde tudo é paz e onde tudo tem um nome!...
As casas são: a Casa da Barca, a do Verdial, a da Renda, a do Outeiro – onde o imortal escritor Arnaldo Gama escreveu algumas das mais belas páginas das suas obras – a da Tojela e quantas mais!...
São o tio Zé Pisco, o tio Chico Fumega, o se Manuel Pândego com a sua típica carroça puxada pelo burro moreno; o se Manuel Chibo, o se António, o se Avelino Marujo, o se Joaquim Meio Quartilho, o se Coutinho das Leiras – um engraçado velhote já quase centenário – a senhora Ana Dioga, a se Rosa Sampedro e a se Emília Bica, esquelética e meã, fumando cigarros como qualquer homem!
Os campos são: o do tanque, o pias, o inças, o do rio e os lameiros, o do fundo, o das levas, e tantos, tantos ... a bouça de Poldrães, onde em catraio andava às maças de cuco e aos pinhões debaixo dos grossos pinheiros mansos, e onde apanhava molhes de fetos e de caruma e colhia amoras nos silvados e tirava, com uma palhinha muito fina, grilos das toquinhas que aqui e além se escondiam no chão ...
São a vinha do regalo, a ramada da cerca; as fontes, a Areda, a de Sence e a de Poldrães; o ribeiro de Ringe, onde em pequeno, dos cinco aos dez anos, caçava “cabeçudos” e brincava com barquinhos de papel; os bois, mansos como um olhar de Jesus, são o carocho, o cabano, o malhado e o chasco; os gatos, o chumbinho, o rabano e os cães, o faísca, o nero e o fajardo: o galo liró e as galinhas a pinta, a franjada, a rabeca e quantas mais!...
As capelinhas, brancas como véus de noiva, são: a do Espírito Santo, a de S. Roque, a de S. André de Sobrado e a da Senhora da Seca. Senhora que tem feito muitos milagres e por quem o povo das Aves tem o maior carinho e devoção.
Nos verões de prolongada seca, quando as pedras rechinam e a terra começa a ficar em torresmos e as árvores e os frutos estiolam à míngua de água e no céu se não vislumbra uma nuvem que possa deitar umas simples gotas de chuva, o povo crente da terra lá vai buscar a Senhora da Seca à sua capelinha e trá-la em procissão para a Igreja paroquial ao som de cânticos e de fervorosas preces.
A Senhora só torna para o seu lugar na capela depois de caírem as primeiras chuvadas.
No entanto já tem acontecido começar a chover copiosamente antes da procissão recolher à Igreja e o povo na sua ingénua e sentida linguagem agradece à Senhora o milagre concedido.
Caminhos que percorri inúmeras vezes de lés a lés, com uma roda de verguinha de ferro, feita na oficina do ferreiro Sr. Joaquim Barros.
Era o luxo das rodas e a causa da inveja dos rapazes da vizinhança! Com ela fazia um vistão! Era um autêntico gamo a correr... Era o Barbosa dessa época! Largos e devesas onde saltava à corda, ao truque e jogava pião, a bola e o botão. Onde se tocava viola, cantava e dançava o Malhão, o Vira, o Corridinho, a Cana Verde e tantas outras danças em que a Guida “Lampaneira” era a principal figura. Ainda da me recordo de muitas cantigas do afamado e popular cantador Zé Maneta – alcunha que lhe puseram por lhe faltar uma mão – cantar ao desafio ou a sós para os pares que rodopiavam nas tardes domingueiras. Era um prazer ouvi-lo tanto pela bela voz que tinha, como pelo humor e acerto das cantigas. Eis algumas:

Minha mãe, minha mãezinha,
Eu venho toda assustada!
Vi o nosso padre cura
Aos abraços à criada!


Ao ouvir falar baixinho,
Desconfiai raparigas!
Tende muito juizinho,
Pois o resto são cantigas ...

Cachopa, se o teu rapaz
Te pedir beijos, diz sim.
Os beijos ficam na pele,
Mas guarda o melhor pra mim."

.../...


Ferreira Neto
Conto Desilusão in O Sorriso da Máscara – s/d

segunda-feira, 16 de março de 2009

Noite na cabana -
Um grilo na prateleira
Procura por algo

Issa

sexta-feira, 13 de março de 2009

Pequenas Memórias - V


O Cinema

Se há algo que eu deveria lembrar-me com perfeita nitidez, pelo choque e deslumbramento que me causou, seria o cinema – o primeiro filme que vi no Cine-Aves? Não me lembro de facto. Nem do primeiro, nem do segundo. Não me recordo títulos, actores lembro de alguns. Penso que foram filmes de “cowboys”. Naquela altura todos os rapazes apreciavam um bom “western” e ao domingo à tarde por finais dos anos 60, princípios de 70 o Cine-Aves passava inúmeros filmes deste género. Os filmes do Trinitá por exemplo: “Trinitá o cowboy Insolente”, “Continuaram a chamar-lhe Trinitá”, “Trinitá é o meu nome” com os actores Terence Hill e o gordo Bud Spencer. Mistos de comédia e acção que nos deliciavam e nos levavam às lágrimas de tanto rir.
Como disse de poucos títulos de filmes me recordo mas lembro as enormes filas que se faziam nas bilheteiras para conseguir um bilhete, correndo sempre o risco de a sessão estar esgotada muito antes da hora. As entradas controladas minuciosamente pelo Sr. Soares. Se o filme não fosse de uma idade adequada para nós, podíamos esperar que não entravamos ou então um senhor mais velho, benevolente, levava-nos, dizendo que era o nosso pai ou tio e que se responsabilizava por nós. Havia filmes para maiores de 6 anos, maiores de 12, maiores de 16 e 18 anos e mesmo para maiores de 21 anos. Na maior parte das vezes seria um beijo mais ousado na tela que fazia a diferença de escalão e que nos impedia de entrar. Como então sonhávamos ter depressa 18 anos!
Recordo também a escada em caracol para o Geral, que era para onde a rapaziada ía, por ser o mais barato. Uma infindável subida que desemboca numa escuridão tremenda, suspensa sobre o balcão e a plateia. No átrio exterior do cinema vendiam-se e trocavam-se livros de aventura, policiais e de cowboy e outros .Os vendedores expunham essas preciosidades no chão, alguns por necessidade de ganhar alguns escudos, outros por simples troca. Penso que foram os primeiros livros que comprei, troquei e li com paixão. Da colecção O Mundo de Aventuras lembro os livros de Tarzan, de Mandrake, do Flash Gorgon, do Condor... Um pouco mais tarde passei para as Aventuras dos Cinco de Enid Blyton. Mas falarei depois das minhas primeiras leituras “a sério”. Juntava alguns tostões e ao fim de semana na porta do Cine-Aves comprava ou trocava todo um mundo aventuras que me alimentava a imaginação por alguns dias. Tive amigos que tinham malas e malas deste género de livros, com quem passava tardes em religiosa convivência.

terça-feira, 10 de março de 2009

Pequenas Memórias - IV















Uma casa na árvore


Todos os anos pelo princípio da Primavera ansiava que o meu carvalho predilecto ganhasse rapidamente as folhagens ramalhudas e extensas que me permitisse usá-lo como a minha casa de leitura. Aliás, penso que esse carvalho foi a minha primeira biblioteca. Era o único espaço que possuía só meu para poder ler e sonhar. O carvalho ficava frente minha casa, num campo onde habitualmente pastavam vacas. Penso que todos os anos, a partir dos oito ou nove, começava a habitá-lo pela altura das férias da Páscoa. A casa ficava desocupada momentaneamente quando começavam as aulas e era de novo habitada nas longas, longas férias de Verão. Todos os miúdos do campo sabem que é relativamente fácil subir a um carvalho. A sinuosidade da árvore com os nós próprios e as saliências faziam com que fosse quase como uma escada. No cimo do carvalho, a três, quatro metros do chão, dispunham-se umas tábuas suficientemente largas e compridas, unindo os ramos mais fortes e firmes de forma a construir um estrado que me permitisse estar sentado, deitado ou de pé. O espaço de mobilidade não era muito, mas o suficiente para pensar que aquele era o meu esconderijo secreto, a que mais ninguém tinha acesso. No Verão, a espessa folhagem da árvore ocultava-me de qualquer intruso que passasse pelo campo ou pela rua próxima. Estendia uma manta velha sobre o estrado e a casa tinha então todas as condições de habitabilidade para umas férias.
Depois levava os meus livros, livros que ía buscar à D. Celinha, responsável pela Biblioteca Fixa da Fundação Gulbenkian a funcionar na Junta de Freguesia. Levava os livros e o lanche, porque a estadia na árvore prolongava-se habitualmente por uma tarde inteira.
Esses primeiros livros que li com prazer e alguma devoção chamavam-se “Os Cinco...”, “Os Sete...”, “Os Mistérios...” da Enid Blyton . Os romances do Emílio Salgari. O Mark Twain, O “Robinson Crusoé”, A “Ilha do Tesouro”, etc. Que fabulosas viagens fazia então no cimo daquele carvalho. Se a aventura fosse no mar, seguia à proa do navio, se fosse num rio ouvia o rumorejar das águas que o vento deixava nas folhas verdes, se fosse numa ilha, estava numa ilha, no meio de uma floresta espessa onde nada, nem ninguém me poderia descobrir ... Se hoje tivesse todos os títulos que li no cimo desse carvalho, sei que teria uma imensa biblioteca. Sei também que nunca viajei tanto em toda a minha vida . Até a este momento, nunca revelei esse local mágico a ninguém .Era uma espécie de T1 que não admitia convidados ou hóspedes. Uma secreta casa de leitura e sonho que já não existe. Esse extenso campo de carvalhos deu lugar habitações de tijolo e cimento sem imaginação.

sexta-feira, 6 de março de 2009

As cigarras vão morrer
mas no seu canto
nada o anuncia

Matsuo Bashô

quinta-feira, 5 de março de 2009

Pequenas Memórias - III


Os Esconderijos


Voltarei à Bouça das Minas mais tarde, quando a sede for muita. Mas por agora e por ter falado em “esconderijos”, quero recordar que todos os rapazes os tinham. Geralmente cada grupo tinha o seu. Os grupos também eram variáveis em número: poderiam ser dois, três, uma dúzia ... Os mais numerosos eram sempre invejados pelos outros, ou pela maior audácia dos participantes, por aventuras mais ousadas, pelo “esconderijo” que possuíam ser desconhecido e como tal inviolável, ou mesmo pelo “chefe” do grupo, ser mais velho e como tal ser mais respeitado na hierarquia dos grupos. Eu pertenci a alguns. Porque, dependendo das amizades circunstanciais, também podíamos mudar de companhia e inevitavelmente de grupo. Estes constituíam-se sobretudo nos três meses das ferias de verão. Três longos meses de aventuras fora de casa!
Um dos grupos a que pertenci em determinada altura tinha um estatuto já considerável. O “esconderijo” secreto era junto ao rio Ave, depois do Rio Berto. Consistia esse “esconderijo” numa caverna natural formada por penedos, mesmo junto ao rio, sendo de muito difícil acesso. Os grupos reuniam, definiam estratégias, algumas até de combate com outros grupos. Pacto secreto era sem dúvida o local do “esconderijo”, e quem o violasse poderia considerar-se excluído de todas s aventuras e até mesmo da amizade dos restantes elementos do grupo . A caverna junto ao rio era ( ainda é, porque ainda existe – visitei-a muitas vezes mais tarde) um local mágico. Levávamos para lá merenda, ferramentas, livros... Era uma tarde inteira dedicada ao belo ofício da aventura.

Embora fosse terminantemente proibido pelos nossos pais, também tomávamos banho no rio. A água fresca e limpa corria ali aos nossos pés, e embora o Ave fosse de uma corrente forte e tumultuoso durante todo o ano, no verão era suave e em alguns locais tínhamos pé para nadar, mesmo sem alguns saberem nadar. A maior parte ainda não conhecia o mar. Alguns rapazes perderam a vida nessas tardes de Verão: nunca que eu me recorde, na “ilha”. Morreram alguns no Amieiro Galego, em Caniços, no Padre Joaquim da Barca. Na “ilha”, não. No Verão o rio formava uma enseada, uma pequena praia que nós cuidávamos e uma ilha de fácil acesso no meio do rio. Num dia em que muitos tomávamos banho, nus, porque não tínhamos calções de banho e jamais podíamos deixar adivinhar aos nossos pais que íamos para o rio, aconteceu uma história engraçada. Um dos rapazes banhava-se tranquilamente no meio do rio, já num fim de tarde, quando os outros, por pura diversão e gozo, esconderam a roupa ao infeliz, e foram-se embora. Quando chegou a hora do rapaz se vestir, não encontrou a roupa. Que aflição! Que desespero! Mas lá teve que enfrentar o destino e vir-se embora nu. Não morava longe. No entanto ao atravessar uns campos de milho, umas mulheres que vinham das regas, depararam com o rapaz em pelote. Gritos de incredibilidade e de espanto. Claro que ao chegar a casa o pobre do moço levou uma sova. É para que servem os amigos!

E os cheiros da terra, dos campos, das eiras? O cheiro do milho em Agosto; das uvas em Setembro...

quarta-feira, 4 de março de 2009

Manhã

Ilumino-me
de imenso

Giuseppe Ungaretti

segunda-feira, 2 de março de 2009

Pequenas Memórias - II


A Bouça das Minas


Um dos lugares misteriosos que mais tempo me ocupou na infância foi a Bouça das Minas, onde hoje está situado a escola EB23 de Vila das Aves e o Lar da Tranquilidade. A bouça era um local de brincadeira por excelência, cheia de carvalhos, sobreiros, pássaros e coelhos. Um caminho de terra batida atravessava-a, para quem se dirigia de Romão para a igreja, com um portelo de cão a meio onde diziam apareciam bruxas e almas penadas. Acampei nesta bouça, por diversas vezes, com os lobitos (com a saudosa D. Inês) e os escuteiros (com o chefe Américo Luís, seu filho). Bouça das Minas, porque havia uma mina. A água fria corria num regato pelo interior da terra, por onde poderíamos avançar de pé no meio de uma escuridão medonha. Poderíamos... mas quase nunca o fazíamos, excepto quando no grupo, havia alguém destemido o suficiente para avançar pela terra dentro, sem nunca ver onde púnhamos os pés, onde pudesse surgir uma cobra monstruosa, um morcego cavernoso, um animal inverosímil E as aranhas?!
A mina era de uma extensão apreciável, mas que eu me recorde, nunca avancei até ao fim. De um lado corria em direcção ao estádio do Aves, que nessa altura ainda não era estádio, mas bouça. Do outro avançava até Freixieiro(?), ou mais até ao rio? Num dia de Verão a frescura da mina era bálsamo para os rapazes suados das correrias, da perseguição aos pássaros, da fuga da escola. Também se contava que existiria um tesouro escondido algures dentro da mina guardado por uma máscara de ferro: de moedas de oiro, do tempo dos mouros. Quem sabe algum de nós o encontrou?!

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Não deixes o cansaço instalar-se
em vez disso
silenciosamente
como a um pássaro
estende a mão ao milagre

Hilde Domin

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Pequenas Memórias - I


Outrora um viajante era afortunado depois de subir a avenida Silva Araújo, pela canícula de Agosto, por um banco, uma árvore e uma sombra, no largo da Tojela. A árvore era muito bela, diziam única, por estas redondezas. Alguém assegurava que tinha vindo do Oriente pela mão de um monge de Singeverga. Quando foi derrubada, os mais velhos datavam-na de mais de cem anos. Vim a descobrir que era uma espécie de faveira da América (porque há várias), talvez da Amazónia. Uma árvore que viu todo um século passar-lhe debaixo, como no poema “Velhas Árvores”, do poeta brasileiro Olavo Bilac:


Olha estas velhas árvores, mais belas

Do que as árvores novas, mais amigas:

Tanto mais belas quanto mais antigas,

Vencedoras da idade e das procelas…

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas

Vivem, livres de fomes e fadigas;

E em seus galhos abrigam-se as cantigas

E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!

Envelheçamos rindo! envelheçamos

Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,

Agasalhando os pássaros nos ramos,

Dando sombra e consolo aos que padecem!”


Árvores como esta nunca deveriam ser abatidas.
Mais à frente, o viajante descobria um fontanário, dos vários que havia na freguesia, que nos trazia de uma mina profunda, uma água tão pura como penso que seria a do poço de Jacob. Ninguém era abandonado à sua sorte no impiedoso calor do Verão, e em qualquer lugar, no princípio de uma rua, no fim de um caminho, uma ramada providencial, uma bica de água, um muro baixo, revestido a musgo – e o viajante podia descansar. Por vezes uma enorme carvalheira e o descanso era quase o paraíso.
E o rio? Os muitos lugares mágicos do rio? Do Ave e do Vizela: o Amieiro Galego, o Padre Joaquim da Barca, o Rio Berto, Cense, as Carvalheiras, a Azenha do Pisco?
Aí, cada bando de rapazes, explorava tudo: as pedras, as minas, os esconderijos, as árvores, os animais, os pássaros: todos os buracos eram escrutinados ao pormenor. Descobriam-se raposas, pintassilgos, ninhos de cuco, cobras e peixes... E na época da fruta era um fartote para todos os que andavam na rua. Saltava-se o muro das quintas e dos quintais e apanhava-se as laranjas, as maças, as cerejas e os pêssegos docíssimos, que abundavam e que sabíamos onde os apanhar...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Se estou só
não posso estar melhor.
O meu vinho
bebo-o sozinho
Ninguém me proíbe de o fazer
e tenho assim os meus próprios pensamentos.

Goethe