Todos os anos pelo princípio da Primavera ansiava que o meu carvalho predilecto ganhasse rapidamente as folhagens ramalhudas e extensas que me permitisse usá-lo como a minha casa de leitura. Aliás, penso que esse carvalho foi a minha primeira biblioteca. Era o único espaço que possuía só meu para poder ler e sonhar. O carvalho ficava frente minha casa, num campo onde habitualmente pastavam vacas. Penso que todos os anos, a partir dos oito ou nove, começava a habitá-lo pela altura das férias da Páscoa. A casa ficava desocupada momentaneamente quando começavam as aulas e era de novo habitada nas longas, longas férias de Verão. Todos os miúdos do campo sabem que é relativamente fácil subir a um carvalho. A sinuosidade da árvore com os nós próprios e as saliências faziam com que fosse quase como uma escada. No cimo do carvalho, a três, quatro metros do chão, dispunham-se umas tábuas suficientemente largas e compridas, unindo os ramos mais fortes e firmes de forma a construir um estrado que me permitisse estar sentado, deitado ou de pé. O espaço de mobilidade não era muito, mas o suficiente para pensar que aquele era o meu esconderijo secreto, a que mais ninguém tinha acesso. No Verão, a espessa folhagem da árvore ocultava-me de qualquer intruso que passasse pelo campo ou pela rua próxima. Estendia uma manta velha sobre o estrado e a casa tinha então todas as condições de habitabilidade para umas férias.
Depois levava os meus livros, livros que ía buscar à D. Celinha, responsável pela Biblioteca Fixa da Fundação Gulbenkian a funcionar na Junta de Freguesia. Levava os livros e o lanche, porque a estadia na árvore prolongava-se habitualmente por uma tarde inteira.
Esses primeiros livros que li com prazer e alguma devoção chamavam-se “Os Cinco...”, “Os Sete...”, “Os Mistérios...” da Enid Blyton . Os romances do Emílio Salgari. O Mark Twain, O “Robinson Crusoé”, A “Ilha do Tesouro”, etc. Que fabulosas viagens fazia então no cimo daquele carvalho. Se a aventura fosse no mar, seguia à proa do navio, se fosse num rio ouvia o rumorejar das águas que o vento deixava nas folhas verdes, se fosse numa ilha, estava numa ilha, no meio de uma floresta espessa onde nada, nem ninguém me poderia descobrir ... Se hoje tivesse todos os títulos que li no cimo desse carvalho, sei que teria uma imensa biblioteca. Sei também que nunca viajei tanto em toda a minha vida . Até a este momento, nunca revelei esse local mágico a ninguém .Era uma espécie de T1 que não admitia convidados ou hóspedes. Uma secreta casa de leitura e sonho que já não existe. Esse extenso campo de carvalhos deu lugar habitações de tijolo e cimento sem imaginação.
2 comentários:
Já podias ter "aberto o jogo"... É um blogue que vale a pena ler...
Algumas das fotos são para mim muito familiares e as estórias cheias de pontos comuns...
Parabéns...
( Visita "Entre-ambos-os-Aves.blogspot.com)
Gostei destas "Pequenas Memórias", não só porque me divertiram bastante, como tambem "apanhei uma boleia para o passado". Através delas pude revisitar fragmentos da minha infância, bem haja...
(minardo)
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