terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Pequenas Memórias XXVII



Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves


“- Bote lá outra caneca! Quero afogar esta mágoa que me rói cá dentro. Ora vejam: - Receber mais umas notas de cem na reforma, é um benefício que deveria ser festejado com repique de sinos e foguetório! Que pindérica vida esta! O operário têxtil reformado neste país – neste asilo de mendigos! – é um homem atirado à valeta!
E saber que há por aí tanto gandaieiro que nunca produziu nada – que passou a vida de lápis na orelha e mãos macias como as de ministro – a receber mais do dobro da bagalhoça de reforma do que aquele infeliz que trabalhou nas máquinas, que mourejou no duro!
... Fazem do operário gato-sapato. Eu que já fui tecelão, posso dizê-lo afoitamente e com toda a verdade!
A vida do tecelão é pior do que a dos “seringueiros” da selva amazónica ou a de alguns escravizados povos africanos, ou a do ganhão do nosso alentejo.
Esses ainda têm o céu ilimitado, a paisagem luxuriante e agreste, a pureza do ar, a liberdade de sofrerem e de serem desgraçados!
O tecelão, sem vislumbre de novos horizontes, metido entre quatro mal caiadas paredes, só tem as telhas de um vermelho cozido e os vidros foscos por onde o seu olhar mortiço, de pavio queimado, tenta furar para a vida livre e espontânea.
Os céus do tecelão são os ferros pintados de um verde deslavado e os fios de algodão que minuto a minuto, hora a hora, semana a semana, ano após ano – como um estigmatizado destino ou doloroso fadário – o oprimem, o despersonalizam e lhe matam a razão de ser homem, tornando-o numa coisa opaca, robotizada e fria, sem direito a criar e a ter ideias!
Tece, tece e leva uma vida de prisioneiro que não sendo como os dos campos de concentração ou de certas penitenciárias, se iguala, porém, na monotonia, na impotência e na desesperante incerteza de ver-se reconhecido como um Ser pensante e inventivo.
O seu raio de acção só comporta o pardieiro onde ressona e procria, a fábrica onde tece e apodrece, o café e a tasca onde se emborracha e o campo de futebol onde se despersonaliza! Nada mais!
Trabalha uma vida inteira a fazer pano para vestir os outros e anda ele mal vestido, pois o misérrimo salário que lhe pagam não compensa o seu esforço e não é suficiente para ele fazer face ao constante aumento do custo de vida; e no fim, velho e doente, acaba a pedir esmola para não morrer de fome, pois a reforma que a lei lhe confere não é o bastante para poder viver como homem livre e independente”.


Ferreira Neto
A Serpente era Mulher, romance, 1985
Edição Junta de Freguesia de Vila das Aves

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Pequenas Memórias XXVI


Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves


"
... Ainda me recordo de quando passava na rua, junto da passagem de nível do mercado Silva Araújo, estarem debaixo das chapas do barracão alguns trabalhadores da fábrica Rio Vizela – vulgo Negrelos – com os panelos entre as pernas, cheios de couves mal adubadas, que eles tiravam com um garfo para comerem!
Era assim só miséria... "

A Serpente era Mulher
Ferreira Neto, Junta de Freguesia de Vila das Aves, 1985


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Pequenas Memórias XXV


A Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves


(.../...)

“O comendador levanta-se e vai encostar-se ao batente de uma janela. Tira de quando em quando uma fumaça do seu charuto.
A um aceno do comendador, Ricardo ergue-se da cadeira e vai encostar-se à mesma janela mas do lado contrário.
Olham ambos lá para fora e o comendador estende o braço direito e com a mão aponta o local onde, diz, vai mandar construir um bairro de casas de renda económica.
- Sabes Ricardo. Delfina diz que é uma “toléria” a minha ideia. Que não vale a pena, que já estou velho para andar a incomodar-me com estas coisas...
Mas eu estou com esta ideia ferrada na cabeça e tem de ser. Mas digo. Não haverá festa, nem discursos, nem corte de fita – porque não haverá fita – nem convidados, nem benzeduras. E dou-lhe o pretexto de casas económicas cá por coisas...
Mas as casas que vou mandar construir são para dar aos meus operários. Aqueles que não tem casa. Dá-las. Dá-las simplesmente. Está na moda esta forma de fazer socialismo. Mas tudo isso não passa de uma uma bambochata.
Dava-se ao operário um ordenado compatível e sociedade na empresa, porque se o patrão é o senhor do capital, o operário é o senhor do trabalho, um tem o dinheiro, o outro tem as mãos – e ele que fizesse ou mandasse fazer à sua maneira e a seu bel-prazer a casa e tudo aquilo que necessita. Dar-lhe mais dinheiro e com ele a liberdade de criar e de escolher. Assim o operário é um autêntico escravo! Pior!
Porque com o escravo propriamente dito o seu dono não podia dar-lhe muito maus tratos porque se ele morresse perdia o dinheiro do seu custo e o rendimento do seu trabalho. Agora não!
Ao patrão tanto se lhe dá que o operário morra ou que viva. Para ele é igual. Não perde nada com isso. Um a sair, uma dúzia ao portão a pedir emprego.
(... / ...)
Ferreira Neto
Cruzamento (romance), 1963
Edição de Autor

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Pequenas Memorias XXIV


A Textil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves



CANÇÃO DO LINHO




Era popular, esta cantiga, entre as tecedeiras dos anos quarenta.
A cantiga, ao que parece, ajudava as tecedeiras e os tecelões na tecelagem, bem difícil, do linho.

Anda a roda e as canelas
Vão cheias para o tear
Não trabalhava sem elas
Ele é que as há-de esfiar

Passa o fio pela mão
Para seguir bem direito
Vai tecê-lo o tecelão
Com amor, carinho e jeito

O linho maciozinho
Quando às vezes vem a neve
Faz da casa um paraíso
O linho torna-se leve

Tão leve e tão benfazejo
Tão querido de todos nós
Que os seus lábios protegem
Do traidor lobo feroz

A canela já está toda
Bem cheiínha e então descansa
Pelos minutos na roda
O braço também se cansa

Pois o trabalho é preciso
Trabalhando, a minha mãe
Também se cansa, também
Lá no cimo das montanhas


Depois volta a manivela
Com rapidez a girar
Assim trabalha o tear
Com lançadeira e canela
Nota: Assim cantava minha mãe tecedeira
Professor José Machado

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Pequenas Memórias XXIII


A Têxtil nos Poetas e nos Prosadores de Vila das Aves
Os meus 40 anos de empregado têxtil



Se alguém me perguntar se a caminhada
Foi dura do começo até ao fim ...
Prefiro responder sem dizer nada:
Não sofro... nem sofri... sei ao que vim!...

Foi como uma oração, de fé rezada,
E acompanhada a toque de clarim...
Nem só quem chora sente a alma cansada,
Também há desencantos dentro de mim...

Meus olhos, como tal, nunca sorriram,
As flores mais tratadas não abriram
E as que abriram murcharam de repente...

Valeu-me esta constante sinfonia
Que se chama beleza e poesia
E me deslumbra a alma eternamente!...



Fernandes Valente Sobrinho
Ponto Final (Poesias)
Vila das Aves- 2008
Ed. De Autor

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Pequenas Memórias XXII


A Têxtil nos Poetas e Prosadores de Vila das Aves
Poema a Vila das Aves

Vila das Aves, meu amor primeiro!...
- Visão distante: um homem... um arado...
O sol... duas janelas... um cruzeiro!...
E a terra preta feita grão dourado...

Vermelhas chaminés que o branco arado
Foi levantando em volta do cruzeiro!...
Meu mundo pequenino... dilatado!
Já vestes quase Portugal inteiro...

Meu Ave e meu Vizela sussurrantes,
Neste poema aberto entre vós dois
Há páginas que falam de gigantes...

...Milagre que Deus fez pelo seu braço:
Onde cantavam dantes rouxinois
Rangem agora maquinismos de aço...


Fernando Carneiro


- 1ºs Jogos Florais de Vila das Aves – 1º Prémio na categoria: Soneto
1957
Paisagens do Meu Mundo, 1958
Ed. de Autor

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Pequenas Memórias XXI


A Têxtil Nos Poetas e Prosadores de Vila das Aves
Mulher da Minha Gente




Um silvo rouco entra pelo sono dentro,
Na rotina implacável do labor fabril
É breve a infância, o sonho interrompido
E já os olhos se lavam na manhã urgente
Para entrar a calhar no ritmo do tear.

Seus passos, ao compasso doutros passos,
Perdem-se no anónimo rumor
E tem por companheiro o braço desta gente
Que fia e tece sonhos de grandeza
Por dez reis de sonho, em recompensa.

Mulher que se agiganta ao frenesi da máquina
E conhece, por dentro, a urdidura
Desta teia que a trama e configura
O gesto livre de amar, sem galanteio,
Ou a altivez com que se nega a usura.

Sente a amargura do algodão nas cardas
Nas horas desfiadas a cismar nos filhos
- Linho fiado sem igual desvelo –
E, tão madrasta é a vida por deixá-los
Horas a fio, à sorte, ao abandono!

O cotão da idade branqueia-lhe o cabelo,
Sabe a textura das rugas no tecido
E quando deixa a lida já tem netos,
É pródiga de beijos e de afectos,
Mulher que se gastou, mulher da minha gente.


Luís Américo Carvalho Fernandes
1º Caderno de Poesia (Autores Avenses)
Edição – Associação Avense - AA78
1980