sexta-feira, 29 de maio de 2009

Pequenas Memórias XIV



Publiquei em Março deste ano, neste blog, a 1ª parte do conto "Desilusão" de Ferreira Neto (1923 / 2003).Publico hoje a 2ª parte deste belo conto publicado no livro "O sorriso da Máscara", que teve uma edição de autor muito limitada e artesanal, como era timbre do autor. Penso ser este um dos últimos contos do saudoso escritor avense.

Porque estas são também as minhas memórias ...

... Velhos caminhos, resguardados por baixas paredes de pedra enegrecida e solta, debruadas de musgo e hera e de silvas carregadas de amoras grandes e pretinhas como azeitonas, das quais fazia vinho num púcaro de barro, que depois bebia deliciado juntamente com outros colegas de brincadeira.
A oliveira grande, como lhe chamávamos, que ainda lá está, muito velhinha, mas ainda com vida, no topo da cancela da Quinta do Outeiro, junto do prédio do Gouveia onde funcionava no rés-do-chão a escola primária.
(Um dia de manhã, ainda me recordo, ao chegar a hora de ir para a escola, meu pai, que já estava em mangas de camisa na loja a atender os fregueses – meu pai nesta data possuía um estabelecimento de mercearia e vinhos – deu-me um recado para levar à minha avó.
Meti rua abaixo rumo a sua casa, que ficava perto, para lhe transmitir o recado.
Quando cheguei, minha avó estava sentada na cama a rezar.
Pedi-lhe a bênção, dei-lhe o recado e sentei-me a seu lado enquanto ela me afagava o rosto e os cabelos.
Aos pés da cama e pendurado na parede havia um quadro estranho (esse quadro é minha pertença desde a sua morte e não interessa plasmar esse quadro em palavras, aqui e agora, por fastidioso), sem contudo descobrir por mim só, a mensagem que transmitia.
Como a minha avó notasse o meu desejo de desvendar o mistério desse quadro, não se fez rogada.
E sem mais aquela me decifrou uma a uma as simbólicas figuras que enchiam a tela. No meu ingénuo e interessado arrebatamento não me dei conta da hora da entrada na escola.
Foi meu tio Francisco (o Chico Teixeira) que da oficina de alfaiataria me chamou à realidade, dizendo-me que fosse andando que era mais que tempo.
Dei um beijo na minha avó e corri como um alce a ver se encontrava ainda pelo caminho algum colega mais retardatário!
Não tive sorte!
Ao chegar junto da escola já a aula tinha começado há cerca de meia hora.
Em vez de bater à porta e pedir licença à professora D. Benedita para entrar, abeirei-me da oliveira e trepei (por ela) como gato bravo!
Estava uma manhã primaveril, um sol límpido e um céu azul, sem nuvens.
Inebriado pela beleza da manhã e pelo gorjeio dos pássaros nas árvores em redor, deu-me na bolha para cantar diversas cantigas, muito em voga nessa época, entre elas a da Rambóia, que principiava assim:

“Rambóia,
Vai p’rá rambóia
Vem da rambóia
Eu bem o sei.
Só por morte, meu Deus,
Ó que sorte
Só por morte
A rambóia deixei.”
A cantiga fazia perder de riso o mais sisudo, quanto mais tratando-se de jovens escolares.
Ia a cantarola em meio quando me chegaram aos ouvidos as estridentes gargalhadas que na escola alguns dos meus colegas soltavam.
O Tónio Garcia, o Augusto Lima, o Tino Galego, o Zé Maria Manquinho e outros…
Se já estava a cantar com gosto e certinho, daí por diante é que presumei.
Quanto mais e melhor eu cantava, mais a risota da malta aumentava.
Quanto mais eles riam, mais me dava ganas de abrir as goelas.
A brincadeira durou quase uma hora!
Quando me encontrava (já) meio rouco e cansado do esforço que fizera para levar ao máximo as cordas vocais, inclinei um pouco a cabeça para baixo e vejo o meu pai no caminho, perto da oliveira, qual estátua de severidade, de olhos fixos em mim!
Creio que fiquei paralisado de espanto e de medo e que o meu coração deixara de bater por momentos!
Se naquele instante pudesse evaporar-me, julgo que o teria feito!
- Desce daí, meu melrinho, disse-me ele: estiveste a cantar a rambóia e eu agora vou ensinar-te a dançar a chula vareira!...
Dali até à nossa habitação coçou-me o traseiro bem coçado com uma porrete de sobreiro, já antigo e encascado, que existia em casa e fora o seu inseparável companheiro nos muitos serões que fizera enquanto moço.
(Nunca consegui apurar como foi que meu pai soube do que se estava a passar; para que se efectivasse a sua presença ali!)
Ai a minha amada e saudosa terra. Sinto rachar-me a alma ao ver-me longe de ti.

Ó Aves, terra querida,
Como tu outra não há!
Ó morte eu dava-te a vida
Se tu ma levasses lá!...

Quero ver a terra remexida
Pelo tractor e pela enxada.
Quero sentir o bafo do gado
E o cheiro do esterco nos campos
E ver as flores ao natural
E as estrelas ao luar:
Quero ouvir o toque das Ave-Marias
E o falar ingénuo dos Maneis e das Marias…

E os sinos… o sino grande, o das almas e o das Ave-Marias. E cada repique, cada toque, cada som, alegre ou nostálgico é uma prece, que as aves cantam, a gente reza, a brisa murmura e as flores e as árvores entendem.
Onde se encontram orações pelos caminhos e cada velhinho é um santo sem saber que o é!
Moças prazenteiras e garridas como a Rosa Doceira, a Guida Travanca, a Linda Varandas e tantas outras. A Maria dos Prazeres, uma linda cachopa de olhos azuis e transparentes – como a água que foge de entre os penhascos saborosa e pura – e de cabelos castanhos, muito compridos, de corpo flexível, aveludado, natural, sem mazelas nem produtos de beleza (a não ser a beleza que a natureza prodigamente lhe concedeu) agarotada e meiga!...
Oh!... pudesse eu tornar ao principio e seria novamente feliz!...
Ambicioso, quis ser uma celebridade, um super-homem, e sou apenas um simples número, igual a milhões de números, sem beleza e sem glória!...
Na cidade é tudo automático, tudo fictício, tudo grotesco, tudo são fichas, tudo é falso, tudo é numerado!...
O homem é um número, a casa é um número, o quarto é um número, a rua é um número, o automóvel é um número, o autocarro é um número. Tudo são números!...
Na cidade não há personalidade, não há amor, não há caridade, não há fé, (Deus não existe!) a verdadeira luz do homem.
Na cidade o sol é um sol baço, triste e as suas noites não têm luar. É tudo é uma luz morta, artificial!
Na cidade tudo é matemático, tudo é conduzido (como rebanho de carneiros). Tudo é progresso. Tudo é ciência. Tudo é matéria. Tudo é frio. Tudo é lei.
Não há o gesto espontâneo, o sorriso aberto, o sentir de uma graça, a pureza de um sonho de amor, o sentimento profundo.
Tudo é efémero. Tudo é publicidade. Tudo é hora. Tudo é pressa. Tudo é pressa. Tudo é dinheiro. Tudo é mentira. Tudo é loucura. Tudo é barulho!
Na cidade não há espírito, não há alma. Na cidade os homens são máquinas, são robots!...
“Eu sou um robot!...”


Ferreira Neto

in O Sorriso da Máscara

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Pequenas Memórias XIII


As Fábricas:
como navios a apodrecer no cais deserto ...