quarta-feira, 1 de abril de 2009

Pequenas Memórias - X



Hoje é sábado e na “baixa” o mundo é outro. Há movimento, respira-se ar de negócios e no mercado e nas ruas adjacentes corre uma multidão vinda de muito longe e de perto, ávida de comprar e de vender, de somente assistir ao escoar de massa humana, “ver passar a banda”, que deambula por aqui, e por ali – saudar este, cumprimentar aquele que já não via há imenso tempo. O tempo está quente: estamos em Abril e já se vêem homens e rapazes em mangas de camisa e colete ; as mulheres lá seguem com enormes cestos, sobre rodilhas, à cabeça, num equilíbrio precário, de saias compridas, aventais de pano cru e chinelas de cabedal; lá vão mercar chitas baratas, riscados, socos de coiro – ou então se é festa que se aproxima, baptizado ou casamento, lá mercam umas argolas de oiro ou uns botões para as orelhas, um lenço de merino ou de seda. Os homens talvez um relógio com corrente de prata, um chapéu de bom feltro, ou um alfinete para a gravata.
O tempo está quente: e o negócio é bom e entre os capões de Freamunde e as galinhas poedeiras de Lamoso, lá se vão alinhando numa certa desordem os lavradores e as lavradeiras, os vendedores e as vendedeiras com as carroças cheias de flores, fruta, ovos, sementes de batata, a couve galega, o repolho, a tronchuda, o milho, o feijão as cebolas. O povo chega de todo o lado – de Romão, de Sobrado e de fora da freguesia de Rebordões, de Lordelo de Bairro ou Sequeiró. Chegam a pé de madrugada, de bicicleta, de carreira ou comboio. Irão partir a meio da manhã uns, cheios de sacos e de novidades para contar em casa – outros mais tarde, depois de fazerem todos os negócios.
À medida que a manhã avança o burburinho vai aumentando e os pregões das vendedeiras atingem quem passa perto e mais longe e misturam-se com as súplicas dos aleijados estendidos em lugares estratégicos a mendigar “esmolinha por quem lá tem”, e a conversa das comadres e os gritos das crianças. Os homens apinham as tascas: a do Coelho ou a do Pisco e o cheiro a fritos inunda a rua; da pensão das Aves e a do Almeida há caixeiros – viajantes de chegada, outros de partida – tendo ajustado o negócio das fazendas nas fábricas do Rio Vizela, ou na da Traineira, que agora – são onze horas da manhã – abrem os portões. Uma leva humana sai apressada e engrossa a corrente dos que compram e vendem fazendas, miudezas, chapéus, louças, guarda-sóis; dos que entram e saem com embrulhos, sacos, da casa Capela, do Brandão, do Ferreira Dias, do Ricardo, do Pagajá...

Um rapazito descalço salta para cima do muro e grita: “Atenção, vem o comboio”! Um velhote apressa o passo para a outra banda e duas mulheres sobre a linha, antes que a cancela feche, fazem o mesmo mas no sentido da feira. Um cheiro forte a carvão, e uma nuvem de fumo avança mesmo junto ao muro. Um longo silvo atravessa o ar e o barulho da maquinaria inunda toda a rua, todo o mercado. O comboio imenso passa devagar. Há gente que acena das janelas. Irá imobilizar-se mais à frente. Mesmo a horas.
(texto publicado no suplemento do Jornal EntreMargens de 01/04/2009)

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