terça-feira, 17 de março de 2009

Pequenas Memórias - VI


Porque estas são também as minhas memórias.


"Na aldeia onde tudo é simples, onde tudo é paz e onde tudo tem um nome!...
As casas são: a Casa da Barca, a do Verdial, a da Renda, a do Outeiro – onde o imortal escritor Arnaldo Gama escreveu algumas das mais belas páginas das suas obras – a da Tojela e quantas mais!...
São o tio Zé Pisco, o tio Chico Fumega, o se Manuel Pândego com a sua típica carroça puxada pelo burro moreno; o se Manuel Chibo, o se António, o se Avelino Marujo, o se Joaquim Meio Quartilho, o se Coutinho das Leiras – um engraçado velhote já quase centenário – a senhora Ana Dioga, a se Rosa Sampedro e a se Emília Bica, esquelética e meã, fumando cigarros como qualquer homem!
Os campos são: o do tanque, o pias, o inças, o do rio e os lameiros, o do fundo, o das levas, e tantos, tantos ... a bouça de Poldrães, onde em catraio andava às maças de cuco e aos pinhões debaixo dos grossos pinheiros mansos, e onde apanhava molhes de fetos e de caruma e colhia amoras nos silvados e tirava, com uma palhinha muito fina, grilos das toquinhas que aqui e além se escondiam no chão ...
São a vinha do regalo, a ramada da cerca; as fontes, a Areda, a de Sence e a de Poldrães; o ribeiro de Ringe, onde em pequeno, dos cinco aos dez anos, caçava “cabeçudos” e brincava com barquinhos de papel; os bois, mansos como um olhar de Jesus, são o carocho, o cabano, o malhado e o chasco; os gatos, o chumbinho, o rabano e os cães, o faísca, o nero e o fajardo: o galo liró e as galinhas a pinta, a franjada, a rabeca e quantas mais!...
As capelinhas, brancas como véus de noiva, são: a do Espírito Santo, a de S. Roque, a de S. André de Sobrado e a da Senhora da Seca. Senhora que tem feito muitos milagres e por quem o povo das Aves tem o maior carinho e devoção.
Nos verões de prolongada seca, quando as pedras rechinam e a terra começa a ficar em torresmos e as árvores e os frutos estiolam à míngua de água e no céu se não vislumbra uma nuvem que possa deitar umas simples gotas de chuva, o povo crente da terra lá vai buscar a Senhora da Seca à sua capelinha e trá-la em procissão para a Igreja paroquial ao som de cânticos e de fervorosas preces.
A Senhora só torna para o seu lugar na capela depois de caírem as primeiras chuvadas.
No entanto já tem acontecido começar a chover copiosamente antes da procissão recolher à Igreja e o povo na sua ingénua e sentida linguagem agradece à Senhora o milagre concedido.
Caminhos que percorri inúmeras vezes de lés a lés, com uma roda de verguinha de ferro, feita na oficina do ferreiro Sr. Joaquim Barros.
Era o luxo das rodas e a causa da inveja dos rapazes da vizinhança! Com ela fazia um vistão! Era um autêntico gamo a correr... Era o Barbosa dessa época! Largos e devesas onde saltava à corda, ao truque e jogava pião, a bola e o botão. Onde se tocava viola, cantava e dançava o Malhão, o Vira, o Corridinho, a Cana Verde e tantas outras danças em que a Guida “Lampaneira” era a principal figura. Ainda da me recordo de muitas cantigas do afamado e popular cantador Zé Maneta – alcunha que lhe puseram por lhe faltar uma mão – cantar ao desafio ou a sós para os pares que rodopiavam nas tardes domingueiras. Era um prazer ouvi-lo tanto pela bela voz que tinha, como pelo humor e acerto das cantigas. Eis algumas:

Minha mãe, minha mãezinha,
Eu venho toda assustada!
Vi o nosso padre cura
Aos abraços à criada!


Ao ouvir falar baixinho,
Desconfiai raparigas!
Tende muito juizinho,
Pois o resto são cantigas ...

Cachopa, se o teu rapaz
Te pedir beijos, diz sim.
Os beijos ficam na pele,
Mas guarda o melhor pra mim."

.../...


Ferreira Neto
Conto Desilusão in O Sorriso da Máscara – s/d

1 comentário:

minardo disse...

Tenho esperança que esta "terra de entre ambos os Aves", irá um dia acordar para valorizar, recordar e homenagiar a vida e obra dos seus artistas. Ferreira Neto, foi sem dúvida um dos mais ilustres, a sua vasta obra literária fala por si.

(minardo)